sábado, 9 de julho de 2011

O fim do catolicismo democrático

Com a chegada de Scola a Milão, "não restou mais nada ao catolicismo democrático, nem um só representante da atual hierarquia que o represente".


A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 29-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.


Eis o texto.


A questão não é pessoal, é política. Em nível pessoal, de fato, a figura humana e cristã do cardeal Angelo Scola merece seguramente a estima de Bento XVI e a consideração de todos os católicos italianos; é um fino intelectual, doutor em filosofia e em teologia com publicações importantes e, como patriarca de Veneza, demonstrou ser capaz de governar sem se deixar nivelar pela proveniência ciellina [do movimento Comunhão e Libertação], e penso que fará o mesmo em Milão. Mas eu dizia que a questão é política, porque se refere a uma herança de 30 anos e, mais em geral, do papel do catolicismo democrático na Itália.


Nessa perspectiva, é impossível negar que a nomeação de Scola como arcebispo de Milão soe como uma humilhação pesada, talvez a última, para o catolicismo democrático. Depois dos episcopados de Martini e de Tettamanzi, a diocese milanesa havia permanecido como o único ponto de referência nacional para aqueles católicos que ainda não esqueceram as esperanças conciliares de renovação.


Era possível escolher entre continuar nessa linha, moderá-la ou combatê-la frontalmente. A escolha de Bento XVI foi a terceira. Só assim, a meu ver, se explica a sua escolha, jamais vista na história, de transferir um patriarca de Veneza a arcebispo de Milão, visto que, de Veneza, os patriarcas sempre foram embora só para se tornarem papas (Pio X, João XXIII e João Paulo I para ficar no século XX).


Vai se produzindo, em nível eclesial, o inverso do que ocorreu em nível civil? Ou seja, que a cidade-símbolo do berlusconismo e do leguismo [da Liga Italiana] que se tornou com Pisapia a capital de um possível new deal italiano agora, em nível eclesial, de símbolo do catolicismo democrático, se torne a capital de um catolicismo conservador de marca ciellino?


O equilíbrio mostrado por Scola como reitor da Universidade Lateranense e como patriarca de Veneza, e sobretudo a sua formação intelectual, não justificam esses temores, não é preciso cair no erro de reduzir Angelo Scola ao Comunhão e Libertação. As pessoas que pensam são sempre mais do que a sua história.


Certamente, no entanto, com a saída de Tettamanzi e com a chegada ao seu posto de um bispo de formação “ciellina”, não restou mais nada ao catolicismo democrático, nem um só representante da atual hierarquia que o represente. Tempos atrás, tinham-se bispos como Lercaro em Bolonha, Pellegrino em Turim, Ballestrero em Bari e depois em Turim, Bettazzi em Ivrea, Tonino Bello em Molfetta, Giuseppe Casale em Foggia, Pietro Rossano em Roma como auxiliar, e justamente Martini e Tettamanzi em Milão, que constituíam um ponto de referência para os católicos progressistas deste país.


Com exceção de Bettazzi e Tonino Bello, nenhum deles foi um espírito particularmente inovador, nem muito menos foram produzidas dialéticas públicas, impensáveis nas hierarquias eclesiásticas italianas, que sempre estiveram entre as mais conservadoras do mundo. No entanto, se sentia que as instâncias mais abertas à mudanças encontrariam nesses bispos pelo menos uma possibilidade de serem ouvidas, de serem compreendidas como exigências reais da vida concreta, sem serem tachadas a priori como heresias.


Não era grande coisa, mas às vezes, em uma família, basta só a impressão de sermos ouvidos para mantermos o desejo de pertencimento. Hoje, não há mais nenhum assim entre os bispos das principais dioceses italianas. Aos católicos progressistas deste país foi retirada até a última possibilidade de ter um ponto de referência na hierarquia, e eu não sei se isso é realmente a vontade do Espírito Santo, que sempre amou o pluralismo, visto que inspirou quatro Evangelhos, e não só um.


Esse é o significado político da nomeação de Angelo Scola a arcebispo de Milão, e dizendo político quero prescindir totalmente da sua figura humana e intelectual, pela qual vale o que eu disse no início. Na mensagem à diocese de Milão, o cardeal Scola manifestou o seu "intenso afeto colegial" aos cardeais Martini e Tettamanzi.


Relutante até o último momento, porque não queria ser dissuadido dos estudos bíblicos, Martini chegou a Milão e se pôs a ouvir a cidade, compreendendo, de baixo, do que ela tinha necessidade: como especialista em crítica textual, leu a cidade como um antigo código bíblico e lhe deu a correta exegese, tanto que, para todos, crentes ou não, ele foi a mais alta autoridade moral nos anos difíceis do terrorismo e dos Tangentopoli [corrupção em todo o sistema político italiano nos anos 1990].


O mesmo processo ocorreu para o cardeal Tettamanzi, teólogo moral sem o mínimo ar de progressismo, que se tornou em Milão um exemplo de profecia, porque, diante do rosto mais duro e menos cristão da sociedade, nunca esqueceu a solidariedade e o apelo da Bíblia ao direito e à justiça.


Depois de um biblista e de um teólogo moral, agora é a vez de um teólogo sistemático. O intenso afeto colegial pelos seus antecessores levará o cardeal Scola a continuar na sua direção? Ou ele foi escolhido pelo papa, removendo-o de uma sede como Veneza, para agir em direção a uma clara descontinuidade? Ou o status pessoal de Angelo Scola saberá inventar algo novo?


O que é certo é que Milão, e com ela a Itália, tem necessidade de homens que acreditem no diálogo e o favoreçam.


Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=44843

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