sábado, 24 de setembro de 2011

Prostitutas e publicanos entrarão primeiro no Reino dos Céus

A frase está no comentário de Jesus à parábola dos dois filhos: um diz que vai fazer o que o pai pediu e não faz. O outro diz que não quer, mas depois faz a vontade do pai. Texto intrigante!


Esses versículos precisam ser lidos no conjunto do capítulo 21 do Evangelho segundo Mateus: Jesus entrara em Jerusalém (Mt 21,1-11) e tinha entrado em confronto direto com a religião do templo, recorrendo à denúncia já feita por Jeremias: "vocês transformaram a casa de meu pai num covil de ladrões" (Jr 7,11; Mt 21,12-17).


Da boca dos pequeninos, o verdadeiro louvor


O episódio da expulsão dos vendedores do templo é descrito pelos quatro evangelhos. Mateus, entretanto, acrescenta outra provocação de Jesus: cegos e coxos, até então impedidos de entrar no templo por serem considerados pecadores, são curados por Jesus no próprio santuário (Mt 21,14-17). E diante da indignação dos principais sacerdotes e escribas, responde: "Vocês nunca leram que é da boca dos pequeninos e crianças de peito que vem o perfeito louvor?" Desta vez, ele recorreu ao Salmo 8.


A parábola dos dois filhos vem na sequência da figueira estéril (Mt 21,18-22), imagem de um templo e de uma religião que não produzem mais frutos, e do debate de Jesus com as autoridades sobre o batismo de João (Mt 21,23-27).

Jesus, a Lei e a Justiça


"Mas, que vos parece? Um homem tinha dois filhos, e, dirigindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na minha vinha. Ele, porém, respondendo, disse: Não quero. Mas depois, arrependendo-se, foi. E, dirigindo-se ao segundo, falou-lhe de igual modo; e, respondendo ele, disse: Eu vou, senhor; e não foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram-lhe eles: O primeiro. Disse-lhes Jesus: Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus. Porque João veio a vós no caminho da justiça, e não crestes nele, mas os cobradores de impostos e as prostitutas nele creram; vós, porém, vendo isto, nem depois vos arrependestes para crer nele."


"João veio até vós no caminho da justiça, e não crestes nele. Os cobradores de impostas e as prostitutas creram..." (Mt 21,32). O "caminho da justiça" é o caminho de Deus, de seu projeto, de sua vontade, de sua Lei. Na comunidade de Mateus, havia filhos - os fora da Lei - que tinham dito "não quero", porém se converteram à justiça anunciada por João e foram fiéis no seguimento de Jesus. Já os fariseus, que se consideravam justos, cumpridores da Lei, ficaram de fora. A comunidade de Mateus foi radical na hora de transmitir o que entendeu como fidelidade à Lei.


"Não pensem que vim abolir a Lei e os Profetas, mas dar-lhes pleno cumprimento. Quem desobedecer um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar aos outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será grande no Reino dos Céus" (Mt 5,17-19).


A comunidade de Mateus, por um lado, insiste na fidelidade à Lei, por outro diz que o próprio Jesus desobedeceu à lei do descanso sabático, às leis da purificação. Como entender esta aparente contradição entre o que Jesus pede que façamos e o que Ele mesmo praticou no seu tempo?


Na compreensão judaica, Lei e Profetas representam todo o Antigo Testamento: a História de um Deus que caminha com o seu povo e com ele faz Aliança. Jesus veio dar plenitude a esse tratado de amizade de Deus com o povo. Ele quer que sejamos fiéis ao plano salvífico do Pai, fiéis ao espírito do Antigo Testamento e não apenas a um conjunto de regras morais. Assim, resgatou o sentido original da Lei que é o amor misericordioso de Deus e questionou as leis casuísticas da tradição. Por isso, dizia: "ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo..." (Mt 5,21-22)


O evangelho da comunidade de Mateus, que vive as dificuldades com o legalismo farisaico, lembra as palavras de Jesus: "Se a justiça de vocês não supera a dos doutores da Lei e a dos fariseus, vocês não entrarão no Reino dos Céus" (Mt 5,29). E logo, nos capítulos 5 a 7, explica qual deve ser a atitude cristã diante da Lei (contra a prática dos escribas) e diante das obras de piedade (contra o jeito dos fariseus). A síntese aparece na boca do próprio Jesus: ‘Tudo o que vocês desejam que os outros façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consistem a Lei e os Profetas" (Mt 7,12).


Mas e Jesus, como cumpre a Lei? O importante para ele é a Lei da vida. Ele nunca aparece angustiado por leis ou normas cultuais. Ao contrá­rio, denuncia os doutores da Lei e os fariseus que "amarram fardos pesados e os colocam nos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo..." (Mt 23,4). Jesus, ao contrário, vive com grande fidelidade e liberdade e ainda nos convida: "Venham a mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo e eu lhes darei descanso" (Mt 11,28). Para ele, o cumprimento do preceito não é o mais importante. Por isso: "Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês pagam o dízimo da hortelã, da erva doce e do cominho e deixam de lado os ensinamentos mais importantes da Lei, como a justiça, a misericór­dia e a fidelidade" (Mt 23,23). E, por último: "Aprendam o que significa: ‘Eu quero misericórdia e não sacrifícios''' (Mt 9,13).


E nós hoje?


São fortes as palavras de Jesus sobre qualquer forma de hipocrisia religiosa. Esses versículos não escondem o recado: uma religião que se restringe ao cumprimento de rituais e não se vincula com o caminho da justiça, não produz adesão verdadeira.


Como superar a religião do rito? Como fazer a vontade de Deus de fato e não apenas por palavras? A reposta cabe a cada um e cada uma de nós, pessoal e comunitariamente.


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

DESABAFO

Na fila do supermercado, o caixa diz uma senhora idosa:
- A senhora deveria trazer suas próprias sacolas para as compras, uma vez que sacos de plástico não são amigáveis com o ambiente.
  A senhora pediu desculpas e disse:
- Não havia essa onda verde no meu tempo.
  O empregado respondeu:
- Esse é exatamente o nosso problema hoje, minha senhora. Sua geração não se preocupou o suficiente com o nosso ambiente.

- Você está certo - responde a velha senhora - nossa geração não se preocupou adequadamente com o ambiente. Naquela época, as garrafas de leite, garrafas de refrigerante e cerveja eram devolvidos à loja. A loja mandava de volta para a fábrica, onde eram lavadas e esterilizadas antes de cada reuso, e eles, os fabricantes de bebidas, usavam as garrafas, umas tantas outras vezes.
Realmente não nos preocupamos com o ambiente no nosso tempo. Subíamos as escadas, porque não havia escadas rolantes nas lojas e nos escritórios. Caminhávamos até o comércio, ao invés de usar o nosso carro de 300 cavalos de potência a cada vez que precisamos ir a dois quarteirões.Mas você está certo. Nós não nos preocupávamos com o ambiente. Até então, as fraldas de bebês eram lavadas, porque não havia fraldas descartáveis. Roupas secas: a secagem era feita por nós mesmos, não nestas máquinas bamboleantes de 220 volts. A energia solar e eólica é que realmente secavam nossas roupas. Os meninos pequenos usavam as roupas que tinham sido de seus irmãos mais velhos, e não roupas sempre novas.
Mas é verdade: não havia preocupação com o ambiente, naqueles dias. Naquela época só tínhamos somente uma TV ou rádio em casa, e não uma TV em cada quarto. E a TV tinha uma tela do tamanho de um lenço, não um telão do tamanho de um estádio; que depois será descartado como?
Na cozinha, tínhamos que bater tudo com as mãos porque não havia máquinas elétricas, que fazem tudo por nós. Quando embalávamos algo um pouco frágil para o correio, usamos jornal amassado para protegê-lo, não plastico bolha ou pellets de plástico que duram cinco séculos para começar a degradar. Naqueles tempos não se usava um motor a gasolina apenas para cortar a grama, era utilizado um cortador de grama que exigia músculos. O exercício era extraordinário, e não precisava ir a uma academia e usar esteiras que também funcionam a eletricidade.
Mas você tem razão: não havia naquela época preocupação com o ambiente. Bebíamos diretamente da fonte, quando estávamos com sede, em vez de usar copos plásticos e garrafas pet que agora lotam os oceanos. Canetas: recarregávamos com tinta umas tantas vezes ao invés de comprar uma outra. Abandonamos as navalhas, ao invés de jogar fora todos os aparelhos 'descartáveis' e poluentes só porque a lâmina ficou sem corte.

Na verdade, tivemos uma onda verde naquela época. Naqueles dias, as pessoas tomavam o bonde ou ônibus e os meninos iam em suas bicicletas ou a pé para a escola, ao invés de usar a mãe como um serviço de táxi 24 horas. Tínhamos só  uma tomada em cada quarto, e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos. E nós não precisávamos de um GPS para receber sinais de satélites a milhas de distância no espaço, só para encontrar a pizzaria mais próxima.
Então, não é risível que a atual geração fale tanto em "meio ambiente", mas não quer abrir mão de nada e não pensa em viver um pouco como na minha época?

domingo, 18 de setembro de 2011

Mês da Bíblia 2011: Êxodo, segundo Mesters e Orofino

MESTERS, C.; OROFINO, F. A Caminhada do Povo de Deus. Os desafios da travessia: Ex 15-18. São Leopoldo: CEBI, 2011, 48 p. - ISBN 9788577331253

Por Luciano Giopato Roncoleta
Carlos Mesters nasceu na Holanda em 20 de outubro de 1931, mas veio para o Brasil em 1949. Cursou Teologia no Angelicum, em Roma, e Ciências Bíblicas no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na École Biblique de Jerusalém. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa do Instituto Teológico São Paulo (ITESP). Idealizador do CEBI, Mesters é um dos principais exegetas brasileiros.
Francisco Orofino é biblista e educador popular. É também assessor nacional do CEBI e do ISER. Fez doutorado em Teologia Bíblica na PUC-Rio (2000).

Ao apresentar este subsídio, os autores explicam o assunto, o tema, o lema e o objetivo a ser alcançado neste Mês da Bíblia de 2011. Explicam também que a palavra "caminhada", entendida como travessia de uma situação de opressão para a situação de vida plena, presente no título deste livro, era a mais usada pelos primeiros cristãos para designar o movimento de Jesus e que até hoje esta é a palavra mais usada para designar o movimento de renovação da Igreja através das CEBs. O livro, dizem, tem duas partes: uma curta e uma longa. A curta dá uma visão global da Caminhada do Povo de Deus descrita no Livro do Êxodo; a longa traz oito Círculos Bíblicos que fazem uma Leitura Orante de Ex 15-18 e Ex 20.

:: Na primeira parte do livro, a curta, se mostra como Ex 15-24, em dez capítulos e duas partes, descreve a caminhada o povo após a travessia do mar e, em seguida, a celebração da Aliança entre Deus e o povo no Sinai.

Ora, os casos contados em Ex 15-18 são muito simples, bem populares, às vezes exagerados - quem conta um conto, aumenta um ponto! -, mas não para enganar e sim para mostrar melhor a mensagem que os fatos tinham para a caminhada do povo. E em Ex 19-24 os seis capítulos trazem um roteiro litúrgico no qual o povo celebra tudo aquilo que tinha aprendido na caminhada pelo deserto. No Mês da Bíblia deste ano aprofundaremos a primeira parte - Ex 15-18 (e Ex 20) - desta que os autores chamam de Cartilha da Caminhada do Povo de Deus.

Cartilha que é, como dizem, uma parede nova feita com tijolos velhos. Os tijolos podem ser lá do começo de Israel - séculos XII e XI a.C. - mas a parede foi feita devagar, começando talvez na época do rei Ezequias, no século VIII a.C., continuando na época do rei Josias, século VII a.C., e só terminando lá pelo século V a.C., no pós-exílio, na época de Esdras. Esta Cartilha foi, em Israel, uma das ferramentas mais importantes para animar o povo nas dificuldades, para lembrá-lo de suas origens e da necessidade de manter o compromisso da Aliança. É uma Cartilha que traz o passado para o presente do povo, para mostrar que o êxodo continua acontecendo na sua vida, assim, como nós, ao retomarmos o tema, queremos lembrar que o êxodo acontece sempre, acontece aqui no Brasil hoje.

:: Na segunda parte do livro, a longa, estão os oito Círculos Bíblicos. Olhando para estes textos se vê que, durante a caminhada contada em Ex 15-18, o povo reclama, a toda hora, de Moisés e até de Deus. Quem escreveu o Livro do Êxodo chamou isso de murmuração, que é uma fala em voz baixa, um resmungo. Dizemos: "que sujeito mais resmungão"; ou: "pare de resmungar, menino"! Por isso, nos Círculos é bom a gente ver como eles conseguiram vencer as causas da murmuração, do resmungo, e continuar sua caminhada.

Assim, na lista dos oito Círculos Bíblicos a palavra "murmuração" sempre aparece:
  • Primeiro Círculo: Ex 15,1-21 - a força do canto da vitória vence a murmuração provocada pelo medo
  • Segundo Círculo: Ex 15,22-27 - a luz da Lei de Deus vence a murmuração provocada pela sede
  • Terceiro Círculo: Ex 16,1-36 - a segurança da partilha vence a murmuração provocada pela fome
  • Quarto Círculo: Ex 17,1-7 - a certeza do Deus conosco vence a murmuração causada pela descrença.
  • Quinto Círculo: Ex 17,8-16 - a esperança da oração vence a murmuração causada pelo desânimo
  • Sexto Círculo: Ex 18,1-12 - a união das famílias vence a murmuração causada pela divisão
  • Sétimo Círculo: Ex 18,13-27 - a participação nas decisões vence a murmuração causada pela dominação
  • Oitavo Círculo: Ex 20,1-21 - a liberdade dos mandamentos vence a murmuração causada pelo legalismo.

Para cada Círculo Bíblico os autores propõem a seguinte dinâmica:

Acolhida - preparando o ambiente

1. Vivências da caminhada do povo de hoje - pensar numa situação real e fazer perguntas para despertar a partilha

2. Vivências da caminhada do povo da Bíblia - chave de leitura; leitura lenta e atenta do texto; refletir para enxergar melhor; fazer perguntas que ajudam a descobrir a mensagem para nós hoje

3. Chegar a um compromisso diante de Deus - ligar o ontem com o hoje e orar

4. Uma reflexão para enxergar melhor - subsídio para ajudar a diminuir a distância que nos separa do êxodo no tempo e no espaço: do século XII a.C. para hoje são mais de 3 mil anos, do norte da África para o Brasil são cerca de 12 mil km...

Como todo mundo já sabe, os livros de Carlos Mesters - aqui com Francisco Orofino - são escritos em uma linguagem clara, fácil, prática, que cativa o leitor já no primeiro parágrafo. Não são invenções teológicas amargas enfiadas à força na goela do povo, pois a preocupação é sempre ler a vida com a ajuda da Bíblia e não a Bíblia com a ajuda da vida.

Ou, dizendo de outro modo: estimulado pelos problemas da realidade (pré-texto), o povo busca uma luz na Bíblia (texto), que é lida e aprofundada dentro da comunidade (con-texto). O pré-texto e o con-texto determinam o "lugar" de onde se lê e interpreta o texto.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A G E N D A: S E T E M B R O


Andrés Torres Queiruga: Repensar a Cristologia e a Criação

19, 20 e 21 de setembro

das 8 às 11:30h e das 14 às 17:30h

Eventos Comemorativos aos 25 anos da ESTEF

Local: ESTEF (Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana)

Conferências sobre Cristologia e Criação.

O teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, um dos mais produtivos e instigantes teólogos da atualidade, é professor no Instituto Teológico Compostelano da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha).

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Estudo de Êxodo 15,22-18,27

26 a 30 de setembro

das 19:30h às 21:45h

Mês da Bíblia 2011

Local: Salão da Paróquia São Luís Gonzaga, no centro de Canoas

Tema: Travessia: passo a passo, o caminho se faz.

Lema: Aproximai-vos do Senhor.



domingo, 11 de setembro de 2011

Perdoar sempre! (Mt 18,21-35)

Sônia Mota e Nelson Kilpp

O CONTEXTO

Com o texto de Mt 18,21-35, chegamos ao fim do sermão das comunidades ou sermão eclesiástico. O perdão de dívidas e ofensas não era uma prática desconhecida do povo de Israel nos tempos de Jesus. Mas parece que essa prática era bem difícil. De um lado, havia as minuciosas leis judaicas que exigiam uma série de procedimentos. De outro lado, estava a sociedade romana implacável e cruel especialmente para com os mais pobres. Nesse contexto, estão se formando novas comunidades cristãs. Algumas dessas comunidades querem seguir as exigentes leis da sinagoga, outras, pelo contrário, as práticas romanas. É para dentro deste contexto comunitário que Mateus está escrevendo.

A PERGUNTA
O texto começa com uma pergunta de Pedro:

- Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete vezes?

A legislação judaica exigia que se perdoasse até três vezes o irmão. Com sua pergunta, Pedro revela uma disponibilidade maior de perdoar do que a costumeira. Afinal, o número sete significa completude, perfeição. Mas a pergunta de Pedro ainda pressupõe que as possibilidades humanas para perdoar são limitadas.

Jesus responde:

- Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete.

Jesus surpreende com a resposta, pois setenta vezes sete simboliza aquilo que não mais é possível mensurar ou calcular. O perdão não pode ser calculado ou mensurado. Importante é a constante disposição de perdoar; esta não pode ter limites.

A PARÁBOLA

Através da parábola que segue, Jesus desafia os discípulos e as discípulas a sempre terem essa disposição de abertura para o perdão. Podemos dividir a parábola em três cenas.

CENA 1: A dívida e o perdão são imensos (Mt 18,23-27)

Porque o Reino dos Céus é semelhante a um rei que resolveu acertar contas com os seus servos. Ao começar o acerto, trouxeram-lhe um que devia dez mil talentos. Não tendo este com que pagar, o senhor ordenou que o vendessem, juntamente com a mulher e com os filhos e todos os seus bens, para o pagamento da dívida.

O servo porém, caiu aos seus pés e, prostrado, suplicava-lhe: "Dá-me um prazo e eu te pagarei tudo."

-Diante disso, o senhor, compadecendo-se do servo, soltou-o e perdoou-lhe a dívida.

A parábola não revela o motivo da dívida do servo, mas a quantia de dez mil talentos é impagável. Ela equivale a aproximadamente 350.000 quilos. Os tributos anuais pagos a Herodes, por exemplo, eram de 900 talentos. Seriam, portanto, necessários mais de dez anos de receita de uma província romana. O rei age conforme o costume da época: manda vender todos os bens e toda a família do servo devedor. Essa venda, no entanto, saldaria apenas uma parte mínima da dívida. Mesmo que a família toda trabalhasse a vida inteira, a dívida não conseguiria ser paga. Diante do pedido do servo, o rei se compadece e perdoa-lhe toda a dívida.

Chama a atenção o exagero da dívida e da atitude do rei. Este não prorrogou simplesmente o prazo solicitado pelo servo; perdoou-lhe a dívida.

Assim é a nossa dívida perante Deus: impagável. Assim também é o perdão de Deus: incomensuravelmente pródigo. Alguém uma vez afirmou que a pessoa cristã é alguém que foi condenado à pena de morte e depois anistiado.

CENA 2: A atitude mesquinha do empregado (Mt 18,28-31)

Mas quando saiu dali, esse servo encontrou um dos seus companheiros de servidão que lhe devia cem denários e, agarrando-o pelo pescoço, pôs-se a sufocá-lo e a insistir: "Paga-me o que me deves!"

O companheiro caindo a seus pés, rogava-lhe: "Dá-me um prazo e eu te pagarei."

Mas ele não quis ouvi-lo; antes, retirou-se e mandou lançá-lo na prisão até que pagasse o que devia.

Um denário era o equivalente ao salário de um dia. Com cem denários, um assalariado poderia viver parcamente durante quase 6 meses. A segunda cena repete a primeira: alguém cobra uma dívida, o devedor implora por um prazo. A diferença reside na atitude do credor. Nessa segunda cena, o credor não tem misericórdia e, por isso, não perdoa. O imenso perdão de Deus näo mudou a vida do empregado perdoado. A mão aberta para receber permaneceu fechada para dar. Viver do perdão implica deixar-se levar pela gratuidade e estender a mesma aos irmãos e às irmãs na prática cotidiana. As duas metades da quinta prece do Pai Nosso não devem ser separadas: "perdoa-nos ... como nós também perdoamos".

CENA 3- A esperança dos sem esperança (Mt 18,32-35)

Vendo os companheiros de serviço o que acontecera, ficaram muito penalizados e, procurando o senhor, contaram-lhe todo o acontecido. Então o senhor mandou chamar aquele servo e lhe disse: "Servo mau, eu te perdoei toda a tua dívida, porque me rogaste. Não devias também tu, ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti? Assim, encolerizado, o seu senhor o entregou aos verdugos, até que pagasse toda a sua dívida. Eis como meu Pai celeste agirá convosco, se cada um de vós não perdoar, de coração, ao seu irmão.

Os companheiros do credor incompassivo poderiam ter ficado calados ou omissos diante de sua atitude para com o seu companheiro menos afortunado, numa atitude de "não querer comprometer-se", mas eles denunciaram aquilo que consideraram um comportamento inadequado.

Quem não vive o perdäo recebido de forma consequente menospreza o amor de Deus. O perdão compromente, a graça constrange. Ao estendermos o perdão recebido, o fazemos considerando a pessoa que nos ofendeu e em obediência ao mandamento de Deus. A prática do perdão rompe a relação de desigualdade, de exploração e de exercício desumano de poder e coloca a base de uma sociedade alternativa: as novas comunidades cristãs.

FECHANDO AS CORTINAS

Na oração do Pai Nosso pedimos: "perdoa as nossas ofensas assim como também perdoamos a quem nos tem ofendido". A misericórdia de Deus para conosco não tem limites nem se esgota. Só que ela nos constrange a orientar toda a nossa vida por ela. Caso contrário, desprezamos o perdão de Deus, deitamos a perdê-lo. A graça de Deus não é uma graça barata, mas uma graça que exige de nós o compromisso de sermos agentes de perdão e reconciliação. O sermão eclesiástico de Mateus pretende dar diretrizes de como as primeiras comunidades cristãs - e também nós hoje - podemos ajudar a construir uma sociedade alternativa em que o perdão prevaleça sobre a estrutura de dominação e a pirâmide do poder opressor.


Sônia Mota é pastora da Igreja Presbiteriana Unida - IPU; pelo CEBI ajudou a organizar o livro Travessias e Horizontes do Ecumenismo.

Nelson Kilpp é pastor da Igreja Luterana - IECLB. é biblista e autor de vários livros, entre os quais Espiritualidade e compromisso.
Pedidos: vendas@cebi.org.br.
 

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Mês da Bíblia 2011: Êxodo, segundo a revista Concilium

VAN IERSEL, B.; WEILER, A. et al. Êxodo: paradigma sempre atual. Concilium, Petrópolis, n. 209, 1987, 144 p.

Por Sebastião de Magalhães Viana Junior

A Revista Internacional de Teologia “Concilium” foi fundada em 1965 pelos teólogos Congar, Hans Küng, Metz, Rahner e Schillebeeckx. Como era de se esperar, tendo seu início com os maiores teólogos europeus do século XX, aos poucos agrupou ao seu redor teólogos de renome do mundo inteiro. Este exemplar da Revista que está conosco traz três listas dos membros do comitê de direção e dos de consulta de Sagrada Escritura e História da Igreja. De fato, são nomes de peso, espalhados pelo mundo, cujo pensamento se reúne nos resultados das publicações. Elaborada por teólogos europeus, latino-americanos, asiáticos, americanos e africanos, e com publicação simultânea em 7 línguas (francês, inglês, italiano, alemão, holandês, espanhol e português), cada número da Revista sempre volta seu olhar e a direção de sua reflexão para algum tema específico e de interesse para os cristãos, ainda que muitos dos temas sejam polêmicos. Isso acontece porque a motivação para a fundação da Revista se encontra na vontade de manter vivo o “espírito do Concílio Vaticano II”, empenhado em abrir a Igreja Católica para o diálogo com o mundo. Quando um número traz um tema relevante e/ou polêmico, o pano de fundo para sua escolha é manter sempre aberto o diálogo da teologia com a sociedade.

Neste fascículo, que apresentaremos, há uma novidade: “é o primeiro elaborado após a decisão da comissão de direção de reunir num mesmo número a matéria de exegese e de história da Igreja” (p. 5). O que quiseram foi "tornar visível a eficiência da Sagrada Escritura na história que se segue após” (p. 5), ou seja, sem Escrituras a história desenvolvida a partir delas, cujos próprios fundamentos estão nelas, não faz sentido. Tratar do Êxodo desse ponto de vista não significa descartar a importância de sua análise teológica, adotando a atualidade de sua discussão como critério. Por evidenciar tão bem a liberdade, o Êxodo torna-se um “paradigma sempre atual”, “de eficácia perene”. Isso já oferece bastante material para nossa apresentação.

Os temas discutidos foram assim distribuídos: “após o editorial, Roland Murphy – desde o início e até há pouco tempo, um dos diretores da seção de exegese [lembrando que este número é de 1987] – faz uma breve análise sobre a relação entre a Sagrada Escritura e a História da Igreja. [...] Do próprio tema se trata em quatro seções.

A primeira se restringe às Escrituras, mas já demonstra de algum modo como o acontecimento-êxodo se torna um paradigma. Rita Burns explica como, no Pentateuco, as experiências do Egito são tematizadas. Zenger chega à conclusão de que o tema do novo êxodo em Isaías – realizado no mesmo tempo das tradições mais recentes do Pentateuco – amplia essa temática. As reflexões sobre os dados bíblicos terminam com o artigo de Casey a respeito de como este tema é apresentado no Apocalipse de São João.

Na segunda seção tomamos conhecimento de desenvolvimentos ulteriores. Pinchas Lapide escreve sobre a tradição judaica pós-bíblica. John Newton analisa alguns textos programáticos de diferentes movimentos eclesiais que apelam para o êxodo-evento, enquanto Weiler faz pesquisas a respeito da experiência de comunidades semelhantes. A seção termina com uma contribuição esclarecedora de Kort sobre o romance de Leon Uris intitulado Exodus.

A terceira seção se dedica aos desenvolvimentos contemporâneos na própria teologia. Dussel expõe a teologia da libertação, Young a teologia negra e Bergant a teologia feminista. Dussel elabora um modelo estrutural do êxodo-paradigma, relevante também para as duas outras formas de teologia.

A quarta seção apresenta um caráter mais estimativo e hermenêutico. O sociólogo e teólogo Baum avalia a influência do êxodo-paradigma na política, o teólogo da libertação Severino Croatto esclarece os efeitos recíprocos do motivo do êxodo na história da libertação e das experiências nesta história sobre a interpretação daqueles trechos bíblicos. Tracy finalmente tenta uma avaliação teológica” (p. 5-6).

Pelo que pudemos perceber, grande parte da primeira seção não apresenta nada de novo. Com efeito, o terreno da exegese bíblica é bem movediço. Pisar nele é correr o risco de afundar e perder-se. Dizemos isso porque temos em mãos artigos escritos há mais de duas décadas, e, pelo modo como a pesquisa arqueológica tem avançado, reafirmar qualquer coisa sobre o Pentateuco (ou sobre qualquer outro livro bíblico) como verdade absoluta, sem considerar a possibilidade de amanhã ter de desfazer-se de tudo isso, é incorrer em erro grave com a ciência bíblica. O que até então se disse deve ser aceito até que não se diga algo mais bem fundamentado. Sendo assim, a primeira seção não nos interessa muito, já que pretendemos apresentar a atualidade sempre evidente do tema do Êxodo presente na narrativa bíblica. Claro que sua importância não deixa de existir, porque é a partir das Escrituras que é possível perceber o êxodo como paradigma.

As alusões ao Êxodo sempre são muito numerosas, desde os livros do Antigo Testamento até a História da Igreja, como vimos. Desde o início da tradição hebraica, o Êxodo tornou-se o grande ato salvífico de IHWH, através do qual Ele libertou Israel e o instituiu como povo. Muitos notaram que Israel vê as raízes de sua nacionalidade e de sua religião no Êxodo, muito mais do que poderiam vê-las na história dos patriarcas. A razão de sua fé é histórica. Acreditar que IHWH preocupa-se com o povo oprimido é possível porque Ele mesmo manifestou seu poder e sua vontade salvando-o da opressão. Não é sem razão que a memória desse evento permanece ainda muito viva. “Por quê? Por que esse êxodo de tão alta antiguidade já há muito não caiu no esquecimento? É porque nós, judeus, em contraste com outras religiões, nunca separamos a história mundial da história da salvação. Desde sempre a salvação é sentida em Israel como um processo histórico-terreno, que, entretanto, em seu significado mais profundo é antes de tudo de natureza religiosa. Pois nem Moisés nem Aarão são os heróis deste drama, mas Deus, que se revela como o libertador dos fracos e desprovidos de direitos” (Pinchas Lapide, p. 49).

Esse grande evento era comemorado na festa da Páscoa, na qual era feita a recitação litúrgica da história do grande acontecimento (cf. Dt 6,20ss). Celebrar é tornar célebre. Era preciso celebrar a Pessah (páscoa), a festa judaica da libertação e da constituição do povo. Celebrar é fazer ser lembrado: quanto mais se lembra menos se esquece. Mais do que a libertação e constituição do povo, em primeiro lugar, celebrava-se o Deus vivo como fonte da vida.

Este tema liga-se diretamente ao da seção seguinte, na qual são apresentados enfoques genitivos da teologia (da libertação, do negro, da mulher), a partir da leitura do Êxodo. Embora os autores dessa seção (Enrique Dussel, Josiah Young e Dianne Bergant) escrevam com muita propriedade, deve ficar claro que eles não têm a pretensão de reelaborar toda a teologia bíblica. À luz de sua fé e do conhecimento que têm, pretendem, nos parece, decifrar esses setores relevantes da existência humana. Contudo, o ponto de vista que orienta seu trabalho e sua pesquisa há de reconhecer sua própria insuficiência diante do grande leque de possibilidade de novos enfoques. Em vinte anos, quantos outros não poderiam ser discutidos, tendo como ponto de partida o mesmo Êxodo? Como aconteceu outrora com o povo de Israel, sempre que houver alguma insatisfação com o modo como as coisas estão estabelecidas, numa relação dominador-dominado; sempre que houver um certo “mal-estar” por isso, presente geralmente em grupos minoritários e fracos, haverá um novo modo de acender esperanças. As teologias descritas nessa seção são sempre libertadoras; elas respondem aos sinais dos tempos, porque animam a práxis transformadora das relações humanas.

Por esse motivo, o Êxodo é sempre um paradigma atual: ele desemboca em práticas transformadoras, onde houver uma realidade que precise ser mudada (por exemplo, quanto ao espaço da mulher na sociedade, ele se reflete na teologia quando se redescobre e se resgata imagens maternas de Deus, purificando-o de imagens patriarcais e cheia de conotações masculinas, ou quando, na Bíblia, as figuras femininas são redescobertas; quanto ao negro, a teologia cujo enfoque se volta para ele, aparece como resposta ao etnocentrismo, que procura estabelecer uma determinada etnia como a perspectiva humana padrão. Quando surge a discriminação de multidões e de povos inteiros, lá é necessário haver o êxodo deles).

Enfim, cremos que neste mês da Bíblia, empenhados na leitura do livro do Êxodo, teremos um novo vigor para propor mudança onde imperar experiências baseadas no sistema de opressão. A proposta de leitura desse número da Revista “Concilium” para o mês da Bíblia de 2011 é válida, embora o fascículo seja de 1987. Isso só reafirma o que dissemos com os diversos autores: “Êxodo: paradigma sempre atual”. Ela vem ajudar-nos, iluminando-nos com o texto bíblico, a confrontar nossas vidas com a Palavra de Deus, levando-nos também ao nosso êxodo.