Ildo Bohn Gass
A
comunidade de Mateus apresenta Jesus ensinando o maior mandamento em um contexto
no qual os fariseus novamente o procuram, a fim de pô-lo
à prova (Mateus 22,35). Assim já haviam feito ao armarem, junto com os
herodianos, uma cilada em torno do pagamento dos impostos ao império romano,
para apanhá-lo
por alguma palavra (Mateus 22,15). Tanto os representantes da religião
oficial (fariseus), bem como os do império (herodianos), já haviam se dado conta
de quanto era perigoso para seus sistemas o jeito de Jesus propor o Reino do
Pai. Ainda mais, depois que ele também fechara
a boca dos saduceus (Mateus 22,34). Os saduceus eram o partido judaico mais
poderoso naquele momento, uma vez que aglutinava os que controlavam a religião a
partir do templo (sacerdotes) e os que detinham o poder sobre o comércio em
Jerusalém (anciãos). O projeto do Reino de Deus é revolucionário a todos os
sistemas, seja aos de ontem, seja aos de hoje, grandes ou pequenos, dentro ou
fora de nós.
Desta
vez, os fariseus partem para cima de Jesus com uma nova armadilha: Mestre,
qual é o maior mandamento da Lei? (Mateus 22,36). Então, Jesus faz a
memória da centralidade do amor em toda Lei. Dessa forma, ao colocar no centro o
amor a Deus e ao próximo, Jesus torna relativas todas as leis e as tradições.
Elas somente estão conforme a vontade de Deus, caso tiverem como motivação
primeira o amor. Assim, Jesus acusa os fariseus de traírem o projeto de Deus ao
colocarem a letra acima do espírito da Lei. Incomodados pela acusação de Jesus,
eles ficaram sem resposta e silenciaram. Porém, novamente se reuniram. Seria
para preparar outra cilada? (Mateus 22,41). No entanto, agora é Jesus quem passa
a desmascará-los, fazendo perguntas (Mateus 22,42) e acusações fortes contra os
fariseus, incluindo também os doutores da Lei, os escribas (Mateus 23,1-36).
Desse modo, ninguém
podia responder-lhe nada. E a partir daquele dia, ninguém se atreveu a
interrogá-lo (Mateus 22,46).
Jesus faz memória da Lei a
fim de relativizá-la
Em que
parte das Escrituras Jesus busca o espírito da Lei, o princípio do amor? Para o
primeiro mandamento, ele recorre a um dos livros da Lei judaica, o Deuteronômio
(6,4-5): Amarás
ao Senhor, teu Deus... É um amor intenso, isto é, com todo o nosso ser: coração, alma, força
vital e mente.
O
segundo, ele o encontra em outro escrito do Pentateuco, o livro do Levítico
(19,18): Amarás
o teu próximo como a ti mesmo. Também é um amor profundo, pois é amar o
próximo tanto quanto amamos a nós próprios. Segundo Mateus 7,12, Jesus diz o
mesmo em outras palavras: Tudo
que desejais que as pessoas vos façam, fazei vós a elas. Pois esta é a Lei e os
Profetas. Amar intensamente a Deus e o próximo é acolher de coração. É
cuidar com corpo e com alma. É escutar com mente aberta. É solidariedade, força
de vida...
O amor é
o centro da vida nutrida em Deus, pois Deus
é amor (1ª carta de João 4,8.16). Se andamos no caminho de Deus, vivemos o
amor que gera vida, pois
toda a Lei se resume neste único mandamento: ‘amarás o teu próximo como a ti
mesmo'(Gálatas 5,14; Romanos 13,9). Portanto,
o amor é o cumprimento perfeito da Lei(Romanos 13,10). Ao dizer que toda
Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos (Mateus 22,40), Jesus
torna todas as Escrituras relativas em relação ao amor. Somente este é
absoluto.
Os
judeus mais piedosos haviam relacionado todas as leis do Pentateuco. Chegaram a
catalogar 613 leis. Dessas, 365 eram proibições como, por exemplo, não
matarás(Êxodo 20,13). E 248 eram leis afirmativas como lembra-te
de santificar o dia de sábado(Êxodo 20,8). Uma quantidade tão grande de
leis era difícil para o povo cumprir. De um lado, por não saber ler e, por isso,
não conhecer toda a Lei em seus detalhes. De outro, por não ter, na luta pela
sobrevivência diária, condições de cumprir a Lei em todos os seus
pormenores.
Segundo
uma informação que encontramos no evangelho segundo João (7,47-49), os fariseus
diziam que essa
corja que ignora a Lei, são uns amaldiçoados. Isso revela que, para esses
fariseus, as pessoas que não conhecem a Lei e, em consequência, não a cumprem
são amaldiçoadas por Deus. E essa era a situação da maioria do povo pobre
daquele tempo. Apenas uma minoria se considerava abençoada por Deus pelo fato de
saber e cumprir a Lei, bem como as tradições orais sobre o puro e o impuro. Ao
dar valor relativo às inúmeras prescrições e ao colocar como único princípio o
amor, Jesus abre a possibilidade aos pobres de também fazerem parte das bênçãos
do Reino. Segundo os fariseus, por não conhecerem a Lei, estavam fora dessas
bênçãos de Deus. Somente eles achavam ter esse privilégio. Dessa forma, Jesus
derruba os muros que impediam o acesso dos pobres ao Reino. E mais, alegra-se
porque são justamente eles os que acolheram a Boa Nova, enquanto os que se
achavam sábios
e entendidos, porém, prisioneiros de inúmeras regrinhas, se fecharam ao
projeto de Deus (Mateus 11,25). Assim, diante da dificuldade para cumprir tantas
leis, Jesus propõe um caminho alternativo, o caminho do amor.
Caminhemos pela estrada do
amor
O
caminho do amor é um novo jeito de caminhar, é uma nova prática. Sua vivência
não é algo abstrato, teórico, mas é um amor bem concreto. Antes de procurar um
próximo para amar, importa tornar-se próximo através da solidariedade. É isso
que a comunidade de Lucas nos quer lembrar ao acrescentar ao mandamento do amor
a parábola do samaritano misericordioso (Lucas 10,29-37). Ou como recorda a
comunidade de Mateus, ao insistir na prática da misericórdia: Vinde,
benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a
criação do mundo. Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de
beber. Era sem teto e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me
visitastes, preso e viestes ver-me(Mateus 25,34-36).
A
comunidade de João, diferentemente de Mateus, Marcos e Lucas, não separa em dois
o mandamento de Jesus. Vai mais fundo e identifica o amor a Deus com o amor ao
próximo: Amai-vos
uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos
outros (João 13,34; 15,12.17). Se
alguém disser: ‘amo a Deus', mas odeia o seu irmão, é mentiroso; pois quem não
ama o seu irmão a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê (1ª carta
de João 4,20).
Ó Deus de ternura e de
bondade,diante da crise em que os
sistemas deste mundo se encontram,permite-nos que teu amor nos
conduzana superação de todas as
estruturas de morteque ameaçam a vida no
planeta e do planeta. Amém!
Ildo
Bohn Gass é autor da Série Uma
Introdução à Bílblia e coautor de O Pão nosso de cada dia dá-nos hoje.
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