sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

“Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,1-12)



Ildo Bohn Gass é biblista, assessor do CEBI e autor de diversos livros,
dentre eles a coleção Uma Introdução à Bíblia, 
Quatro retratos do apóstolo Paulo e 
O Pão nosso de cada dia dá-nos hoje.


O evangelho a ser refletido na liturgia do próximo final de semana é tradicionalmente conhecido como “as bodas de Caná”. Essa narrativa leva-nos a perguntar sobre o papel da religião, da vivência da aliança entre Deus e as pessoas. A função da religião é petrificar o coração humano ou é gerar novas criaturas no amor de Deus?


De corações empedernidos...

No texto, há vários elementos que revelam a antiga aliança, que foi aprisionada pela religião oficial.

O primeiro é a referência a um casamento. Em Israel, o casamento, desde o profeta Oséias, é uma imagem da aliança de Deus com o seu povo. Portanto, a narrativa nos conduz para dentro da aliança.

Um segundo elemento é a ausência de vinho. “Eles não têm mais vinho”. O amor, representado pelo vinho, e que a aliança deveria revelar, já não existe mais. As estruturas mataram o amor, o petrificaram. Aqui, “eles” é uma referência às autoridades religiosas que transformaram a lei, que deveria gerar vida e liberdade no amor, em um peso para o povo, em um ritualismo vazio de água, vazio de vida e de sentido.

Um terceiro elemento, que revela uma religião que entorta as pessoas em vez de levantá-las, é a referência aos tanques. “Havia ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus, cada uma contendo mais ou menos cem litros”. O simbolismo é muito forte. Elas representam a prática oficial da religião de Jesus, pois serviam para a “purificação dos judeus”. São seis justamente para mostrar a diferença em relação aos sete dias da criação, quando Deus viu que tudo era muito bom. Seis revela incompletude, imperfeição. Nas talhas, não há água. O ritualismo vazio de sentido e de amor transforma qualquer religião em pedra. Eram “seis talhas de pedra”. E uma religião empedernida petrifica os corações dos seus fiéis em vez de torná-los sempre mais humanos, mais de carne, na linguagem do profeta Ezequiel (Ezequiel 36,26). Além da antiga aliança ter sido esvaziada do amor de Deus, além de ter se tornado pedra, ela ainda é muito pesada, sufocando as pessoas e toda comunidade. Engessa-a com seu ritualismo desligado da vida e com suas normas mais voltadas para o moralismo individualista. Numa instituição que endurece corações, até é possível encontrar água. Porém, não é mais possível encontrar amor, simbolizado pelo vinho. O vinho aparece somente fora das talhas e não dentro delas.

Por fim, mais um elemento da narrativa representa a antiga aliança. É o mestre-sala, representante da instituição que não contém mais vinho. Por ter transformado a antiga aliança, que deveria gerar vida, em uma estrutura a petrificar mentes e corações, ele não está aberto para a nova aliança, para a novidade do amor de Deus vivido por Jesus em sua plenitude. Ele não aceita a novidade. A lei lhe basta. Por isso, ele recusa a novidade da nova aliança.


... a corações recriados...

Temos também vários sinais que apontam para a nova aliança que vem recriar a vida.

Iniciemos com a referência ao “terceiro dia”, que indica para duas novidades. A primeira é para a criação da vida em sete dias (Gênesis 1,1-2,4). Convém notar que, neste evangelho, o 1º sinal acontece no sétimo dia. Tendo presente as informações de João 1,29.35.43 e 2,1, as bodas em Caná da Galileia acontecem justamente no sétimo dia da criação, o sábado. Com isso, os autores deste evangelho nos apresentam Jesus como aquele que vem fazer de nós criaturas novas, com base no vinho do amor e não mais nas talhas da lei, cuja letra obscurece o amor. A segunda novidade é que o terceiro dia lembra a vida nova de Jesus no terceiro dia depois da cruz. É a vida em plenitude que derrota as forças de morte e diz sim à vida. A vida ressurge no jardim e recria o novo homem ressurgido da morte, a fim de que participemos de sua vida pelo batismo como pessoas recriadas, como novas criaturas conduzidas pelo amor.

O segundo elemento é a presença da mãe de Jesus nesse casamento. A celebração do casamento revela duas alianças. A primeira é a aliança “deles”, dos judeus que, neste evangelho, são as autoridades judaicas que, por não terem mais vinho, perseguiram Jesus. É interessante perceber que a mãe de Jesus estava com um pé nesta aliança. Ela “estava lá”.
No entanto, ela também estava com um pé na nova aliança, representando o resto fiel da antiga aliança. Ela percebeu a falta de vinho. Buscava o sentido que a religião petrificada havia matado na antiga aliança. Se o mediador da antiga aliança no Sinai foi o homem Moisés, agora, na nova aliança, quem faz a mediação é uma mulher. No texto, ela não tem nome. É que ela é mais que a mãe de Jesus. Representa também a comunidade da nova aliança. Nesse sentido, é a noiva desse casamento. Jesus é o noivo dessa aliança. Em mais. A mãe de Jesus, por ser a noiva da nova aliança, é a amada que segue no amor o seu amado, tal como os jovens enamorados do livro de Cântico dos Cânticos.

Um terceiro elemento é o nome do lugar. Não é por acaso que as comunidades joaninas escolheram Caná como nome para o lugar da festa do casamento. É que Caná significa adquirir. Naquela sociedade patriarcal, o noivo adquiria, pelo dote, a sua noiva. Dessa forma, Jesus adquiriu para si as comunidades que fazem tudo o que ele disse. As comunidades fiéis ao seu amor pertencem a Jesus e por ele se tornam a nova criação gerando, promovendo e defendendo a vida.

Uma quarta questão é que, diferentemente de sua mãe, Jesus com os discípulos não estavam lá. Foram “covidados”, vieram de fora. Como judeu, Jesus entrou na história de seu povo. Mas deixou claro que não está comprometido com a instituição petrificada que fez da lei um peso para o povo. Por isso, quando sua mãe percebeu a falta de vinho na antiga aliança, diz que ela e Jesus mesmo não têm mais nada a ver com essa aliança. “Que tenho eu e tu com isso?” (João 2,4). Em outras palavras, Jesus diz que ele e o resto fiel da antiga aliança não têm nada a ver com o ritualismo que não promove mais amor e vida.

Um quinto elemento é que a água se transforma em vinho fora das talhas. As estruturas envelhecidas não permitem mais a mudança. Ao contrário, dificultam-na e até a impedem, perseguindo quem busca o novo. A novidade, a mudança está lá onde estão os serventes da festa, lá junto aos que, muitas vezes, não são percebidos nos banquetes. Nem lhes é permitido comer as migalhas que caem das mesas que eles servem. Ali, junto às pessoas excluídas, Jesus revelou o amor de Deus. Tal como na aliança do passado, quando Deus fizera aliança com pessoas escravas do faraó, agora libertas, da mesma forma, na fidelidade de Jesus, mais uma vez Deus revela seu amor pleno a toda a humanidade, e preferencialmente aos pequeninos.

Por fim, a nova aliança em Jesus de Nazaré manifesta a “glória”, isto é, a presença plena do amor de Deus. Em Jesus, Deus se tornou palpável. Porém, o ponto alto do amor fiel de Deus foi revelado na fidelidade de Jesus até a cruz. Por isso, nas bodas de Caná, a sua “hora ainda não chegara”. Virá mais tarde, na cruz imposta pelos príncipes deste mundo (1Cor 2,8). O seu amor sem limites, a sua fidelidade aos pobres e à missão de promover a vida com dignidade revelam a glória de Deus, isto é, a sua presença amorosa em nosso meio.


... para um serviço movido pelo amor

E como nós revelamos a glória de Deus em nossas vidas? Fazer parte da nova aliança, como novas criaturas, é servir como os diáconos, os servidores a quem a mãe de Jesus disse: “Fazei tudo o que ele vos disser”.

Fazer tudo o que Jesus nos pediu é acreditar como os discípulos que nele creram. Crer é abrir-se à Palavra que se tornou humana em Jesus (João 1,14), é acolher o seu amor e corresponder com ele como pessoas recriadas no serviço à vida.



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